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24 de Abril de 2024
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    Desnecessidade do Fator Imprevisão no CCB

    Publicado por Enviadas Por Leitores
    há 14 anos
    Por Ezequiel Morais*

    Para análise mais aprofundada do tema, confira a nossa obra em coautoria: MORAIS, Ezequiel. "Resolução por onerosidade excessiva: inovação legal benéfica ou maléfica". In: CARVALHO NETO, Inácio de (Coord.). Novos direitos após seis anos de vigência do Código Civil de 2002. Curitiba: Juruá, 2009.

    Já havíamos mencionado em recente obra que "romper estruturas há muito tempo arraigadas em um sistema é sempre tarefa árdua para o operador do direito. Transpor, nessas últimas décadas, o dogma pacta sunt servanda não foi nada fácil -aliás, ainda não é em virtude da arcaica insistência da economia e do mercado em tê-lo como inabalável e em razão da constante desconsideração da dignidade da pessoa humana" (MORAIS, Ezequiel. A inexistência de novação na confissão de dívida bancária. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes - Coord. A outra face do poder judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. v. 2. Capítulo I, p. 1).

    Observa-se que não só a ciência jurídica se ocupa com a inexecução dos contratos e suas conseqüências. A ciência econômica também! Nessa simbiose, ou nesse diálogo ainda em etapa inicial de construção, o maior problema a ser resolvido refere-se aos critérios utilizados. Enquanto o Direito vale-se da eqüidade, a Economia prioriza a eficiência.

    Ultrapassando esses hercúleos obstáculos, o novo Código Civil, na esteira da evolução doutrinária e jurisprudencial, previu em seção sem correspondência no Código de 1916, dentre inúmeras outras inovações, a hipótese de resolução ou de revisão judicial dos contratos quando a prestação se tornar excessivamente onerosa, por fatores supervenientes, para uma das partes. Estabeleceu, assim, novos direitos e, por conseqüência, novos deveres; oportunizou inéditas leituras de novos princípios (como o da função social dos contratos) -e releitura de antigos também (como o da força obrigatória dos contratos)! Sem dúvida, mudou paradigmas estabelecidos há séculos.

    Outros códigos, como o italiano, o português e o argentino, por exemplo, já prescreviam sobre a possibilidade de resolução ou modificação contratual quando fatos supervenientes onerassem sobremaneira uma das partes. Entre nós, revela-se como prioridade, em homenagem ao princípio da conservação do contrato, a revisão, em detrimento da medida mais drástica representada pela resolução.

    Os novos direitos delineados pelo Código Civil de 2002, nesses seis anos de vigência, têm raízes profundas surgidas a partir dos princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva -duas das mais importantes cláusulas gerais da novel codificação. São essas, também, as bandeiras desfraldadas pelas diretrizes constitucionais e pelas normas consumeristas, que consagraram o intervencionismo estatal para manter em ponto de equilíbrio as relações jurídicas.

    Em plena época dos contratos de adesão ("em massa", standard), afigura-se praticamente impossível a discussão de cláusulas contratuais, fato que por si só já repele a equidade e a liberdade contratual e coloca o aderente em posição de inquestionável inferioridade. Sem dúvidas, dar guarida ao pacta sunt servanda na atual conjuntura é o mesmo que ignorar o senso de justiça.

    Por isso, faz-se necessário defender a verdadeira finalidade dos contratos, isto é, promover a realização dos legítimos interesses dos contratantes e da sociedade. Além do mais, não se pode perder de vista que os pactos devem primar pela solidariedade, pelo equilíbrio das prestações, pelos valores sociais, econômicos e morais e, primordialmente, pelo respeito à dignidade da pessoa humana (CF, arts. , III; , I, e 170, III, V, VII).

    Com esse propósito, ou seja, no intuito de contribuir para a mudança de paradigmas que já não acompanham mais as necessidades e os ideais de justiça das sociedades contemporâneas, é que defendemos a fidelidade ao legado romanístico de pensar o direito a partir da justiça. O cerne de todas as questões abordadas a seguir é a onerosidade excessiva, a imprevisibilidade e o animus -especificamente a vontade inicial viciada por fator superveniente, independentemente de ser ou não previsível.

    Para tanto, afigura-se necessário anotar o conceito de onerosidade excessiva (superveniente). Roberto Senise Lisboa, retratando entendimento predominante na doutrina, aponta que "é o fenômeno pelo qual a obrigação se torna mais gravosa no momento de seu cumprimento do que se poderia esperar, quando da celebração do contrato, em face de acontecimentos externos ou exógenos extraordinários e imprevisíveis" (Manual de Direito Civil. Contratos e declarações unilaterais: teoria geral e espécies. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. v. 3, p. 153).

    Em rasa síntese, a linhas fixadas no referido art. 478 têm origem nas teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva. A teoria da imprevisão provém da imemorial cláusula rebus sic stantibus, que, na Idade Contemporânea, foi consagrada pelo Conselho de Estado da França durante a 1ª Guerra Mundial. Já a teoria da onerosidade excessiva, adotada pela Itália, teve previsão expressa no art. 1.467 do Codice, em virtude das conseqüências que a 2ª Guerra Mundial poderia gerar para a economia. Ambas as teorias dão suporte à revisão e à resolução judicial dos contratos de execução continuada ou de trato sucessivo.

    Entretanto, a leitura do art. 478 do Código Civil está envolta por uma problemática interpretacional. Vários são os pontos controvertidos. Ateremo-nos à análise de alguns deles. Importante, para isso, delimitar o real espírito da lei, a intenção do legislador e as diretrizes fixadas pelo novo Código e por suas cláusulas gerais. Acima de tudo, é mister deixar de lado concepções e dogmas pretéritos.

    A controvérsia central cinge-se à expressão acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. O entendimento sobre o fator imprevisibilidade e as suas causas e conseqüências não encontram, no momento, perfeita sintonia na doutrina e nem na jurisprudência. Por certo, os fatores externos supervenientes, a verificação do desequilíbrio econômico e a mudança da base negocial -desde que provados -possibilitam a revisão ou resolução judicial do contrato porque houve alteração das circunstâncias.

    Considerar tais fatores previsíveis e, por isso, não revisar contratos (manter o pacta sunt servanda), é o mesmo que dissociar o art. 478 do princípio da função social do contrato, da boa-fé objetiva, da eqüidade. É não ministrar justiça contratual e negar efetividade aos preceitos de ordem pública, que são protegidos pelo parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil: "Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos".

    Mesmo assim, problema maior continuamos a encontrar no enquadramento da imprevisão nos contratos de adesão (inclusive naqueles considerados aleatórios). O que são fatores imprevistos, extraordinários? Para alguns Tribunais, a alta do dólar norte-americano, a elevação do preço do petróleo e o aumento da inflação, por exemplo, são considerados fatos previsíveis, visto a rotineira oscilação dos mesmos em âmbito nacional e internacional e a constante e ampla divulgação nos meios de comunicação. Entendem, ainda, que não se aplica a resolução por onerosidade excessiva a contratos aleatórios (art. 458 ao 461).

    Porém, "tal conclusão, posta assim em termos tão taxativos, pode ser questionada, quer em face do texto da norma em referência, quer em face da doutrina mais recente, que se vem pronunciando no sentido da aplicação da lesão, por exemplo, aos contratos aleatórios. De fato, o art. 478 exclui como contratos sujeitos à resolução por onerosidade excessiva os que tenham execução instantânea, mas não exige que os contratos de execução continuada ou diferida sejam, necessariamente, comutativos. Sendo assim, há margem para que a jurisprudência a ser formulada com base na inovação introduzida pelo CC venha a considerar, sob certas circunstâncias, que mesmo os contratos aleatórios possam sujeitar-se a resolução por onerosidade excessiva, com base, entre outros, nos argumentos já desenvolvidos em apoio à aplicação da lesão a esses mesmos contratos" (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. v. 2, p. 132).

    Como visto, há luz no fim do túnel! É possível interpretar o termo imprevisibilidade a partir da análise subjetiva do caso e da desconsideração do pacta sunt servanda. A propósito, vem a calhar o Enunciado n. 17, aprovado em 2002, por ocasião da I Jornada de Direito Civil (aqui usado como suporte): "a interpretação da expressão ‘motivos imprevisíveis’, constante do art. 317 do novo Código Civil, deve abarcar tanto causas de desproporção não previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultados imprevisíveis".

    Inclusive, em outro contexto sobre a interpretação, Armando Castelo Pinheiro realizou aprofundada pesquisa na qual concluiu que os magistrados brasileiros, em sua maioria (73,1%), desconsiderariam os termos contratuais na busca da justiça social, quando as avenças referissem às relações consumeristas, trabalhistas, previdenciárias e ambientais (Judiciário, reforma e economia: a visão dos magistrados no Brasil. Disponível em: www.ipea.gov.br/pub/td/2003/td_0966.pdf . Acesso em: 30 abr. 2010).

    Verifica-se, portanto, não obstante a inicial orientação dos Tribunais em sentido contrário, uma crescente "tendência de interpretação do fato imprevisível tendo como parâmetro as suas conseqüências para a parte contratante e não o mercado. Em outras palavras, levam-se em conta critérios subjetivos, relacionados com as partes negociais, o que é mais justo. Isso seria uma espécie de função social às avessas, visando afastar a onerosidade excessiva, mantendo o equilíbrio do negócio, a sua base estrutural" (TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos -do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. 2. ed. São Paulo: Método, 2007. p. 345-346).

    Pelos motivos expostos, entendemos ser justa a revisão judicial do contrato quando ocorrer excessiva onerosidade, independentemente do acontecimento ser ou não extraordinário e imprevisível. Álvaro Villaça Azevedo adota o mesmo sentido ao afirmar que tem defendido a necessidade de a defesa "fundamentar-se na onerosidade excessiva, tão-somente, à maneira justinianea e não ao modo moderno da cláusula rebus sic stantibus, com sua vestimenta moderna da teoria da imprevisão.

    Realmente, não é preciso que se deva lançar mão de algo imprevisível, que surge após o contrato, a desequilibrar a relação jurídica nele existente. Basta esse desequilíbrio, independentemente de qualquer qualificação, para que cause o prejuízo de uma das partes, ante o enriquecimento indevido da outra" (O novo Código Civil brasileiro: tramitação; função social do contrato; boa-fé objetiva; teoria da imprevisão e, em especial, onerosidade excessiva (laesio enormis). In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004. v. 2. p. 23-24).

    Aliás, Miguel Reale explanou sobre o tema ainda no período de tramitação do projeto do novo Código Civil: "Eis aí um exemplo em que, de um lado, se preserva o direito de contratar e, de outro lado, se previne o abuso que o contratante pode exercer, tirando proveito para si de circunstâncias que estão alheias à vontade de ambos naquele momento em que as vontades se uniram pelo laço contratual" (O projeto de Código Civil. Situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 47).

    Na concepção realiana, foram estabelecidas normas de ordem geral, como fundamento à justiça e suporte para interpretação das avenças. Superou-se a tese individualista. Esse é o norte adotado pelo Código Civil de 2002. Verificamos, portanto, o crescimento de um sólido movimento doutrinário-legal-jurisprudencial na Itália, na Argentina e no Brasil no afã de estabelecer subsídios para a efetivação da justiça social e da eqüidade.

    Com propriedade, José de Oliveira Ascensão aduz que "de todo o modo, olhando o instituto da alteração das circunstâncias, é surpreendente como estamos já longe do absolutismo do pacta sunt servanda" (Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo Código Civil. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004. v. 2. p. 189).

    As novas diretrizes (leiam-se novos direitos e deveres contratuais) estampadas no Código Civil de 2002 conquistaram, também sob o prisma constitucional, um espaço que dificilmente será devolvido ao antes intocável e absoluto dogma pacta sunt servanda. Em suma, Flávio Tartuce lembra que "há uma relação simbiótica inafastável entre a eficácia imediata das normas que protegem a pessoa e o sistema de cláusulas gerais adotado pela nova codificação. Parece que vivemos uma feliz coincidência, diante do diálogo entre o Direito Civil Constitucional, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e a ontognoseologia de Miguel Reale, pois todas essas teorias caminham para um mesmo destino: a valorização da pessoa humana nas relações privadas" (Ob. cit., p. 84).

    Acertadamente, o legislador, apoiado em três importantíssimas fontes -a doutrina, a jurisprudência e os princípios gerais de direito -, objetivou resguardar a finalidade social dos pactos e fez prevalecer a justiça contratual numa época em que o mercado e a economia, através da massificação dos contratos de adesão (com suposta "álea"), insistem em ignorar, no fim das contas, a dignidade da pessoa humana.

    Como já delineado, as previsões legais concernentes à resolução e revisão judicial dos contratos contribuíram, por bem, para decadência do pacta sunt servanda. As rupturas contratuais levadas a efeito em virtude da onerosidade excessiva superveniente, seja ela previsível ou imprevisível, atestaram realmente o abalo da autonomia da vontade. Mas isso não significa crise contratual. É apenas a adaptação dos contratos a uma necessidade hodierna de mudança da forma pela qual a autonomia da vontade foi concebida. Mudança na sua estrutura. Mudança de paradigmas.

    O dirigismo contratual, através da intervenção estatal nas diversas vias, torna-se necessário para manter o equilíbrio das relações jurídicas e para harmonizar os direitos individuais com os direitos sociais. Os contratos de execução continuada, em especial os de adesão, não devem permanecer incólumes quando incidir onerosidade excessiva superveniente capaz de afetar as circunstâncias e o animus presentes no momento da contratação.

    Por conseguinte, diante do novo contexto social, mister ampliar a moldura e o alcance dos termos excessivamente onerosa e acontecimentos extraordinários e imprevisíveis (art. 478 do Código Civil). A partir daí, considerando os deveres de colaboração, lealdade e ajuda recíproca e, bem assim, os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, teremos um ambiente propício à efetivação da justiça sócio-contratual e ao império do respeito à dignidade da pessoa humana e à solidariedade.

    Enfim, entendemos que as cláusulas gerais -por conterem normas de ordem pública -consagraram em boa hora os dispositivos em foco (arts. 478, 479 e 480 do Código Civil) como valores civis-constitucionais, pois, vale repetir, "nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos" (parágrafo único do art. 2.035 do CCB/02). Eis o novo Direito Civil com enfoque constitucional.



    * Ezequiel Morais é Autor e coautor de várias obras jurídicas. Professor de diversos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Civil. Coordenador e professor do IESPE (Instituto de Especialização). Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC-RS) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM-SP). Pós-graduado em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Advogado, ex-Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil e professor da Escola Superior de Advocacia (ESA). Palestrante e Conferencista.

    E-mail : ezequiel@claritoadvogados.com.br


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