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8 de Maio de 2024
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    Breves Notas Sobre o Excesso de Garantia no Mútuo Bancário

    Publicado por Enviadas Por Leitores
    há 14 anos
    Por Ezequiel Morais*

    Afirmei em recente palestra que “na simbiose entre Direito e Economia, o maior problema a ser resolvido refere-se aos critérios. Enquanto o Direito vale-se da equidade, a Economia prioriza a eficiência”. E na mesma ocasião citei uma frase de Gustavo Tepedino: “É preciso assegurar e estimular a economia sem sacrifício do projeto constitucional, que tem na pessoa humana o seu valor mais elevado” (Temas de Direito Civil. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 124).

    Sabemos todos que a atividade precípua das instituições bancárias é a intermediação de capital; para tanto, estão legalmente autorizadas a receber recursos financeiros do público em geral e a disponibilizar empréstimos a seus clientes. Por óbvio, a função de mobilização de crédito desempenhada pelos bancos é de extrema importância, haja vista que propulsiona investimentos e fomenta o consumo de produtos e serviços.

    Apesar do ordenamento jurídico brasileiro não disciplinar de forma específica as diversas modalidades de contratos bancários é fácil perceber as características que são comuns aos pactos desta natureza. As mais relevantes para o escopo deste resumido trabalho são: a padronização dos tipos contratuais e a hipossuficiência do contratante-consumidor. Com efeito, observa-se que os bancos utilizam modelos negociais estandartizados, com cláusulas uniformes, pré-redigidas e sem a possibilidade de alteração. Em interpretação autêntica, o artigo 54 da Lei Consumerista os define como contratos de adesão.

    Por outro lado, a fragilidade do mutuário pode ser vislumbrada em várias vertentes: pela dificuldade em interpretar as cláusulas contidas nas avenças, pelas ininteligíveis fórmulas utilizadas para calcular o débito, pela premência em obter o empréstimo e, sobretudo, em razão da enorme capacidade financeira das instituições bancárias.

    A conjugação dos dois fatores (hipossuficiência do consumidor e padronização dos contratos) limita, significativamente, a manifestação de vontade da parte aderente no ato da assinatura do pacto, circunstância que permite aos bancos condicionar a liberação do crédito ao oferecimento de garantias reais excessivas, além dos encargos excessivos – fato que contraria o disposto nos arts. 6.º, V, 39, V e X, e 51, IV, § 1.º, I, II e III, do Código de Defesa do Consumidor.

    Destarte, é bastante freqüente a constituição de gravame (hipoteca) em bens cujos valores extrapolam em muito o montante total da dívida contraída (já presumidos e projetados os juros, a correção monetária e as despesas de cobrança decorrentes de eventual inadimplemento). Tal prática malfere os princípios da eticidade, da socialidade e os preceitos que regem a ordem econômica brasileira (CF/1988, arts. 170 e 192).

    Acreditando-se portador de direitos absolutos sobre o patrimônio onerado, o banco-credor impõe cláusulas cada vez mais leoninas ao mutuário, sempre forçado a com elas anuir sob a ameaça constante de se ver executado. Não raro, o cliente-consumidor acaba envolvido num círculo vicioso de sucessivas (re) negociações do débito, que deságua nas famigeradas escrituras públicas de confissão de dívida. Aliás, acerca dos contratos bancários seqüenciais, explicamos noutra oportunidade que tais instrumentos visam encobrir “ilegalidades e evitar a repetição do indébito daquilo que foi cobrado indevidamente” (MORAIS, Ezequiel. A inexistência de novação na confissão de dívida bancária. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (Coord.). A outra face do poder judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, v. 2, p. 15).

    Ao lume do novo Direito Civil – com enfoque constitucional e antropocêntrico –, a exigência de garantias reais num patamar muito acima do necessário implica no aviltamento injustificável do poder de autodeterminação do devedor e de sua faculdade de gerir seus bens segundo seus próprios interesses. Mesmo porque, a livre disposição do patrimônio é prerrogativa inerente ao direito de propriedade – também protegido pelas normas constitucionais.

    É inconcebível que o Poder Judiciário coadune com o uso abusivo dos direitos reais de garantia pelas instituições financeiras; pois admití-lo importa em sacrifício da liberdade e da dignidade da pessoa humana, valores irrenunciáveis para o Estado Democrático de Direito que desejamos construir (CF/1988, arts. 1.º e 3.º).

    Além disso, extrai-se que o abuso do direito (a ser analisado no item seguinte) está relacionado com os princípios da socialidade (art. da LICC) e da eticidade, como bem lembrado por Flávio Tartuce ao mencionar que o novo Código Civil “prevê o ilícito para a pessoa que age em desrespeito à boa-fé, aqui prevista a boa-fé de natureza objetiva, relacionada com a conduta leal e proba que se espera de todos os que vivem perante a coletividade, integradora sobretudo das relações negociais” (TARTUCE, Flávio. Considerações sobre o abuso de direito ou ato emulativo civil. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004, v. 2, p. 91).

    No momento em que é imputada uma função social a cada instituto do Direito Privado, parece-nos apropriado destacar que não interessa manter incólumes as disposições contratuais que prevejam garantias reais excessivas. Afinal, os efeitos maléficos que advêm dessa conduta ultrapassam a esfera pessoal e patrimonial do devedor e atingem a sociedade em vários aspectos, inclusive do ponto de vista econômico.

    Pertinente é o comentário de Fábio Henrique Podestá: “em última análise, portanto, a função primordial do Poder Judiciário, segundo pensamos, será compatibilizar os direitos individuais com os direitos sociais como expressão do apregoado solidarismo, sendo perfeitamente lícita e eficaz a intervenção judicial no contrato como forma de conferir o necessário equilíbrio das cláusulas ajustadas [...]. Essa harmonização de direitos decorre não só do seu aspecto funcional, como também da concretização do papel que cada agente social exerce dentro do planejamento global da sociedade e das necessidades humanas, que direcionam o que se denominou por paradigma da essencialidade” (A ideologia das decisões judiciais em matéria de contratos. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (Coord.). A outra face do poder judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. v. 1, capítulo VIII, p. 168).

    De fato, a circulação de riquezas – fonte de arrecadação de tributos, geração de empregos e distribuição de renda – torna-se mais difícil num cenário em que os agentes não têm condições de apresentar um acervo patrimonial, ao menos em parte, indene de ônus e que seja capaz de suportar a celebração de novos negócios.

    O ABUSO DO DIREITO E A RELATIVIZAÇÃO DAS GARANTIAS REAIS NOS CONTRATOS DE CRÉDITO BANCÁRIO

    “Há uma justa medida em todas as coisas; existem, afinal, certos limites”. (Est modus in rebus, sunt certi denique fines – Horácio, Livro I, Sátira I). Esta frase é de Quinto Horácio Flaco (latim: Quintus Horatius Flaccus), filósofo e também um dos maiores poetas líricos e satíricos na Roma antiga. Nasceu em Venúsia, aos 8 de Dezembro de 65 a.C., e faleceu em Roma, no dia 27 de Novembro de 8 a.C. A sátira acima foi criada por Horácio, em 35 a.C., para advertir contra os excessos e recomendar a moderação. É utilizada em tom de advertência, quando se deseja sugerir que algo está ultrapassando os limites do tolerável.

    De acordo com a linha mestra aqui adotada, traçada com base nos princípios da boa-fé objetiva (arts. 113 e 422 do CCB), da socialidade (art. da LICC), da eticidade e da função social do contrato (art. 421 do CCB), entendemos que o exercício de direito por um contratante, mesmo nos seus limites, pode tornar excessivamente oneroso o pacto e causar prejuízos à outra parte, em razão das necessidades e dos acontecimentos supervenientes – previsíveis ou imprevisíveis (CCB, art. 317) – que venham afetar a base negocial (negócio jurídico + realidade).

    A propósito, esse é um dos vários motivos para coibir o excesso de garantia nas operações bancárias de crédito, porque o credor, sempre muito bem assessorado e exímio conhecedor da economia e do mercado, abusa do seu direito ao exigir garantia real em excesso de um mutuário que, não raro, é hipossuficiente e desconhece as “verdadeiras regras do jogo”.

    Já havíamos mencionado em recente obra que “aí se justifica o protecionismo; não aquele desmedido, injusto, mas aqueloutro que tem como desígnio apenas colocar as partes em igualdade de condições, sem lançar mão do direito alternativo ou do uso alternativo do Direito”. Por sinal, uma das finalidades dos princípios (citados no início desse capítulo) é trazer à baila os valores e o ideal de justiça que foram desprezados e pulverizados por paradigmas e por interpretações que não mais coadunam com as novas necessidades sociais.

    Absolutamente correta é a advertência de Luciano de Camargo Penteado ao explicar que “quando se enfatiza a preocupação com a eficiência econômica, com a tutela do pacta sunt servanda, com os princípios contratuais tradicionais, perde-se de vista a sua dignidade de ser livre, a sua espontaneidade de ser construtor da própria trajetória existencial, de ser capaz de desenhar a sua vida. Como fazer para ressuscitar a preocupação com a dignidade do ser humano dentro desta dialética de oposição entre mercado e pessoa? Certamente uma das perspectivas que permite tal superação é a de verificar a existência de deveres jurídicos de solidariedade, como os deveres de colaboração, de lealdade, confiança, de mútua assistência, de fidelidade que são conhecidos pela aplicação da cláusula geral de boa-fé objetiva” (Prefácio do Luciano de Camargo Penteado à 2ª edição da obra de Flávio Tartuce: Função social dos contratos – do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. 2. ed. São Paulo: Método, 2007. p. 17).

    O animus e a base negocial (“centro de interesses”, segundo a doutrina italiana) estão intimamente ligados, e a superveniente dissociação ou modificação dessa última, quando altera por demais as circunstâncias em que os agentes fundaram a decisão de contratar, resulta em traumas que podem ferir a eqüidade, quebrar o sinalagma obrigacional. O direito alemão, desde 1900, também funda-se na cláusula geral de boa-fé objetiva (BGB, § 242).

    Vale ressaltar que se houver descompasso exorbitante entre o valor da dívida e o valor da garantia real, a situação daquele que ofertou a garantia pode se agravar. Na hipótese, e considerando a onerosidade excessiva (superveniente ou não), a discrepância entre a realidade posterior e a situação anterior à firmatura do contrato gera o que nominamos de alteração subseqüente das circunstâncias.

    Miguel Reale, ainda no período de tramitação do projeto do novo Código Civil, explanou sobre o tema: “Eis aí um exemplo em que, de um lado, se preserva o direito de contratar e, de outro lado, se previne o abuso que o contratante pode exercer, tirando proveito para si de circunstâncias que estão alheias à vontade de ambos naquele momento em que as vontades se uniram pelo laço contratual” (O projeto de Código Civil. Situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 47).

    Com essa concepção foram estabelecidas normas de ordem geral, como fundamento à justiça e suporte para interpretação das avenças. Superou-se a tese individualista. Nesse contexto, o Código Civil de 2002, concebido à luz de um dos seus principais idealizadores, inovou ao dispor no art. 187 que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Traz consigo o que se denomina função de controle da boa-fé objetiva.

    No que se refere aos excessos e ao abuso de direito, Sílvio Venosa alerta que “a temperança no exercício de qualquer ato da vida humana não é apenas virtude moral ou ética. O Direito não pode desconhecer essa realidade. Assim como a conduta do homem deve ser exercida com moderação, para não se sujeitar a uma reprimenda social ou psíquica, também o Direito não pode ser levado ao extremo. [...] O exercício de um direito não pode afastar-se da finalidade para a qual esse direito foi criado” (Direito civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, v. 1, p. 602 e 604).

    Ora, diante da atual realidade exsurgida do novo Direito Civil, com enfoque constitucional, diante dos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, e diante das novas leituras principiológicas, não podemos mais nos ater, para configurar o abuso de direito, ao requisito da intenção de prejudicar (animus nocendi, animus dolandi), visto que “a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico” (Enunciado n. 37 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal).

    Do raciocínio aqui expendido, o conceito de abuso de direito não deve ser objeto de interpretação restritiva, ao revés, deve ter o seu alcance ampliado. Em igual sentido, para Venosa, “o exercício abusivo de um direito não se restringe aos casos de intenção de prejudicar. Será abusivo o exercício do direito fora dos limites da satisfação de interesse lícito, fora dos fins sociais pretendidos pela lei, fora, enfim, da normalidade” (Direito civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, v. 1, p. 608).

    O mesmo entendimento pode ser extraído do Enunciado n. 23 da I Jornada de Direito Civil: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.

    Enfim, é preponderante a relativização das garantias reais nas operações bancárias de mútuo. Não se intenta restringir a liberdade de contratar, mas, sim, limitar a liberdade contratual.

    Grande abraço a todos!
    Fiquem com Deus!


    * Ezequiel Morais é Autor e coautor de várias obras jurídicas. Professor de diversos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Civil. Coordenador e professor do IESPE (Instituto de Especialização). Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC-RS) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM-SP). Pós-graduado em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Advogado, ex-Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil e professor da Escola Superior de Advocacia (ESA). Palestrante e Conferencista.

    E-mail: ezequiel@claritoadvogados.com.br


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